Roger Caillois foi um sociólogo e antropólogo francês muito conhecido pelo seu estudo a respeito da teoria dos jogos. O livro \”Os jogos e os homens: a máscara e a vertigem\” é um tratado sobre a própria sociedade humana a partir dos jogos produzidos por ela e os efeitos que eles causam na nossa natureza, sendo um clássico dentro de diversos estudos, ganhando muito destaque nos estudos pedagógicos.
Ele foi o responsável pelo prefácio do livro \”Le Tarot des imagiers du Moyen Âge\”, de Oswald Wirth, considerado o primeiro livro moderno de tarô e a minha base teórica mais forte dentro da prática oracular. Por isso, resolvi resgatar um pouco das minhas raízes acadêmicas (sou da área de letras – tradução do italiano) e traduzir, a partir da versão italiana e do original em francês, este texto, visto que, mesmo sendo apenas um prefácio, tem algumas considerações extremamente pertinentes para a prática oracular. Abaixo segue o texto.
O fato de que um jogo seja usado para divinação é quase que uma contradição de termos. Todo jogo, e, acima de tudo, um jogo de cartas, apresenta-se, necessariamente, como uma totalidade: uma série de elementos constantes aos quais não pode-se acrescentar ou retirar nada, e que não é possível modificar. Um jogo, isto é, a soma dos dados a serem manipulados, deve ser fixo e completo, do contrário, o jogo, ou seja, o complexo de operações que dizem respeito aos dados, é falho desde seu início. Na via contrária, toda forma de divinação conduz a um campo ilimitado, porque compreende os acontecimentos possíveis que são de número infinito, e que se bifurcam de modo imprevisível (ou também previsível, o que, na prática, é a mesma coisa, se a certeza mantém-se excluída) a cada instante. A este infinito normalmente corresponde um outro infinito, sobre o qual o adivinho baseia o seu oráculo: as formas do chumbo, os reflexos que passam pela bola de cristal, as vísceras das vítimas ou a fumaça do incenso, o óleo versado sobre a água ou as manchas de tinta, os sonhos, os desenhos formados na borra do café. Em todos estes casos não há nada que se repita, nenhuma circunstância em que ocorrem os mesmos acontecimentos, as mesmas desgraças, as mesmas fortunas, nunca nada é absolutamente igual. A originalidade, a vantagem e ao mesmo tempo o paradoxo da aplicação de um jogo de cartas na adivinhação consistem no fato de que o ilimitado, os casos possíveis, dependem da presença visível e das combinações limitadas de um número pequeno de símbolos tradicionais, cujos significados estão contidos em léxicos muito difundidos. Naturalmente, o adivinho reivindica os direitos da clarividência, e nunca esquece de afirmar que esta é, de fato, o essencial. Isso não impede que, para os consulentes, as cartas constituam uma garantia: permitem um controle sobre a sentença enigmática da sorte, pois são tiradas do baralho pelas suas próprias mãos. Ao profeta espera-se somente que as interprete, de acordo com um código tão creditado que o próprio profeta começa a explicar os motivos de seu desacordo quando se afasta das regras universais. Esta restrição dupla resulta, para ele, em um benefício. O intérprete, de fato, diante de uma infinidade de símbolos diversos, encontra-se mais confuso do que auxiliado. Ele deve reduzir (como expliquei a respeito da oniromancia) a sua multiplicidade a um pequeno número de acontecimentos que ocorrem mais ou menos a todos: um encontro, uma viagem, um amor, uma traição, uma doença, o fracasso ou o sucesso, a riqueza ou a ruína, a morte inevitável. A ciência da divinação, afirmava, é obrigada a passar por essa porta estreitíssima, a reconduzir os inumeráveis dados a uma dezena de eventos que o homem encontra quase que necessariamente no curso da sua breve vida. Logo, o fato de que o repertório dos signos seja restrito não é, de forma alguma, negativo. É importante, porém, que tais signos possam combinar-se de diversas maneiras, como os planetas e as casas mundanas no firmamento imutável, como as cartas sobre a mesa da pítia. Somente as totalidades podem conter o infinito que são as condições humanas. Os planetas, que são sete ou nove, os doze signos do zodíaco, os trinta e dois ou setenta e oito (ou até mesmo o número que se prefira, desde que ele expresse um conjunto fechado) retângulos coloridos constituem totalidades que resumem e contém o universo. Não se produz e nem se produzirá nada que já não seja reflexo de outra configuração de astros inflexíveis, longínquos e eternos, ou da disposição de alguns símbolos escolhidos e ordenados, pelas faces mudas, dispostos por uma mão cega que, sob a aparência do acaso, é guiada pela Sorte irrefutável. Uma hipótese extravagante, e por ser extravagante, inegável. Ato de fé no improvável por excelência, desafia qualquer argumento: afirma que todo aspecto de uma determinada possibilidade corresponde a um estado preciso que existe no passado, no presente ou no futuro de um outro complexo misteriosamente ligado ao primeiro. Para passar de um sistema a outro, é necessário conhecer, isto é, inventar, as correlações necessárias. Mas falemos sobre os jogos de cartas: na China, um texto lamentavelmente tardio e sem autoridade diz que, por volta de 1120, um funcionário da corte doou trinta e duas placas de marfim. Algumas destas faziam referência ao céu, outras à Terra, algumas então ao homem, e a maioria falava de noções abstratas como a sorte e os deveres do cidadão. O soberano teria ordenado que fossem reproduzidas e difundidas por todo o seu reino. O jogo, chamado “Mil vezes Dez Mil”[1], se é que existiu, contava somente com trinta cartas: três séries de nove cartas cada e três trunfos, que são as cartas chamadas, respectivamente, “mil vezes dez mil”, “a flor branca” e “a flor vermelha”. Quatro sinais vermelhos estão desenhados nas cartas cósmicas, correspondendo aos pontos cardinais. Nas cartas humanas, dezesseis símbolos correspondem às virtudes, também chamadas, por analogia, de cardinais (benevolência, justiça, ordem e sabedoria), cada uma das quais é expressa quatro vezes. A soma dos símbolos do jogo resume o número de estrelas.
Desta maneira, este jogo é um microcosmo, um alfabeto de emblemas que contempla o universo inteiro. Esta tendência enciclopédica não era menos presente nos jogos indianos, tão sistemáticos, ainda que rigorosamente mais ligados à teologia. No final do século XVI, mais ou menos cinquenta anos após a referência aos jogos enviada por Baber ao Xá Hassan, Abul Falz Allami descreve um jogo de 144 cartas, com doze séries de doze cartas. Abkar as reduz a 96, com oito séries. Geralmente admite-se que o jogo de 96 cartas é uma adaptação islâmica de um jogo indiano de 120 cartas, dividido em dez séries de doze cartas, correspondentes às dez encarnações ou avatares de Vishnu e ilustradas com os seus símbolos. Este jogo é chamado de Dasavatara, e é jogado na Índia até hoje. Cada série tem duas figuras: o rei e o vizir, e dez cartas numeradas de um a dez. Nas cinco primeiras séries, a ordem das cartas é ascendente, de um a dez, sendo a um a com menos valor. Nas outras cinco, a ordem está invertida, e o um vira a carta mais alta. Geralmente, a carta mais forte do jogo é aquela que representa a encarnação do deus como Rama ou Narasimba. Após o pôr-do-sol, a mais forte é, por sua vez, aquela que tem a figura de Krishna, ao menos enquanto esta carta existe no jogo. As cartas numeradas contém o emblema do avatar que dá o nome à série, repetido quantas vezes exija o seu valor. Em geral, os emblemas são: peixes, tartarugas, conchas, discos, ou seja moedas, flores-de-lótus, ânforas, que podem corresponder às copas, machados, arcos, bastões e sabres. Existem também elefantes, macacos, vacas, cavalos, leões, nagas ou mulheres. Alguns baralhos apresentam cenas contendo de um a dez personagens, de acordo com o valor da carta: um fumante solitário, dois homens discutindo, uma dama e sua criada visitando um sadhu, dois homens fazendo um truque com uma corda enquanto outros dois os assistem, uma menina dançando na frente do rei de três cortesãs, etc. Os primeiros baralhos de cartas conhecidos no Ocidente estão mais próximos à simbologia chinesa, racional e cívica, do que da luxuosa mitologia indiana. Os Naibi, cartas conhecidas na Itália no século XIV, são uma espécie de instrumento mnemônico de conhecimentos úteis. São cinquenta imagens[2], distribuídas em cinco séries de dez cartas. As séries correspondem às condições da vida, às Musas, às Ciências, às Virtudes e, por fim, aos planetas. As condições da vida vão da mais humilde ao poder social e espiritual supremo: o mendigo, o servo, o artesão, o mercador, o cavalheiro, o erudito, o rei, e, por fim, o imperador e o papa. Para completar a segunda série, Apollo foi adicionado às nove Musas. Junto às cartas que representam os sete planetas, foram adicionadas a oitava esfera, o “Primo Mobile” e “Causa Primeira”. Em relação às ciências e às virtudes, não faltavam opções. Era um jogo didático. O Tarô provavelmente nasceu da combinação dos Naibi com as cartas numeradas: estas últimas, que vão do ás ao 10, compreendem quatro séries que são encontradas nas cartas espanholas: copas, espadas, moedas e bastões. Estes símbolos aludem, respectivamente, ao clero (as copas representam o cálice), à nobreza, aos comerciantes e aos camponeses. Um tratado veneziano de 1545 propõe outra explicação: “As espadam lembram a morte daqueles que se deixam arruinar pelo jogo; os bastões mostram a punição merecida por quem trapaceia; as moedas representam o que alimenta o jogo; e, por fim, as copas, a bebida onde as disputas entre os jogadores são apaziguadas”. Os Naibi parecem ter fornecido os arcanos maiores, com 21 cartas, sem o Louco, que não é numerado. As 78 cartas do Tarô são, até então, o instrumento preferido e mais prestigiado das cartomantes.[3]
Pode-se usar somente os Arcanos Maiores ou o baralho inteiro, de acordo com o método escolhido. Geralmente, a cartomante dispõe os vinte e dois Arcanos Maiores na frente do cliente, com a face para baixo, e pede para que doze cartas sejam escolhidas, dispondo-as, em ordem, em doze posições, chamadas de “casas”. Depois, mistura as cartas que sobraram às outras do baralho e recomeça a operação. Dessa forma, cada casa terá duas cartas. A primeira revela o princípio que domina a casa, e a segunda as reações eventuais e os acontecimentos futuros. As doze casas são, respectivamente, o domicílio da vida, dos bens, do parentesco, da herança paterna, dos filhos, da servidão (isto é, os servos e os animais domésticos não cavalgáveis), do cônjuge, da morte, da religião, das honras, dos amigos e das aflições, Além disso, cada uma delas corresponde a uma parte do corpo. Este complexo engloba tudo aquilo que pode acontecer no curso da existência. A origem astrológica desta disposição é evidente. As doze casas são modeladas sob a influência zodiacal.
As cartas, sobretudo as que compõem os Arcanos Maiores, viraram objeto das exegeses mais diversas e sutis. Os naipes das cartas numeradas são semelhantes aos quatro elementos: as espadas ao ar (visto que a espada rodopia no ar), os bastões ao fogo (são feitos de lenha, que é inflamável), as copas à água (elas contém os líquidos), as moedas à terra (pois são feitas dos metais que ela produz) Além disso, as espadas também simbolizam a vontade e a potência; os bastões, o trabalho e os deveres cívicos, a energia material e a fecundidade; as copas, o amor e o misticismo, a elaboração mística das riquezas espirituais; as moedas, os conhecimentos, a arte e toda atividade criativa que regula o mundo externo. Poder-se-ia enumerar os significados atribuídos aos Arcanos Maiores para sempre. Não existe ciência conjectural ou doutrina esotérica (astrologia, aritmosofia, alquimia, etc) que não tenha sido utilizada para esclarecer o mistério, ou para adensá-lo. Rios de tinta foram derramados para falar sobre os Arcanos Maiores. Quis-se descobrir uma linguagem hierográfica universal. Court de Gebelin decifrou os tesouros da sabedoria tradicional. A Egiptomania da primeira metade do século XIX pretendia identificar estes símbolos recorrendo ao Zodíaco de Dendera. Os ocultistas modernos como Eliphas Lévi, Papus, Stanislas de Guaita e, por fim, Oswald Wirth, interpretaram cada detalhe e cada cor de cada detalhe. Tudo possui um significado arcano (N.d.T: secreto) e iniciático. Na realidade, parece se tratar de um conjunto compósito, no qual há imagens de origem bíblica (o anjo, ou o Juízo Final, a Torre, que é muito semelhante à Torre de Babel, o Diabo), as virtudes advogadas pela igreja (a Justiça, a Força, a Temperança), certos astros acompanhados pelos signos do Zodíaco (a Lua com o caranguejo do signo de câncer, o Sol com os gêmeos, a Estrela acima do signo de Aquário), as duas grandes potências da época: o Papa e o Imperador, com a águia imperial ou a tiara, cada um deles acompanhado de uma esposa, seja por fantasia, por irreverência ou por necessidade simétrica. No Arcano do Mundo, reconhecem-se os símbolos dos quatro Evangelistas. As alegorias do Amor e da Morte são clássicas. O Pendurado e a Roda da Fortuna são frequentemente encontrados na iconografia medieval. O Eremita, com sua lanterna, relembra sem sombra de dúvidas Diógenes. Reconheceria de bom grado Alexandre no homem triunfante, coroado e revestido de armadura que guia o Carro. Alexandre era muito popular naquela época. Junto a Diógenes, forma uma dupla lendária, a partir da contrapõem-se a pobreza arrogante e a grandeza terrena. A primeira carta, o Pelotiqueiro[4], que lembra o famoso quadro “le bateleur”, de Bosch, também pertence ao repertório de alegorias daquele tempo. É a carta que comanda o jogo inteiro: sobre a sua mesa, estão dispostos os objetos que retirou de sua trouxa, e, junto do bastão que empunha, eles nos lembram os naipes das cartas numeradas. Ao centro da mesa, há dados, para que, nem quem consulta e nem quem busca a leitura, se esqueçam que a distribuição das cartas depende da Sorte. O último arcano, o Louco, uma espécie de vagabundo com um gatinho em seus calcanhares, foi comparado frequentemente com outro quadro de Bosch: o hobo. Esta carta não faz parte da série dos Arcanos Maiores. É uma carta livre, também vagabunda, polivalente. Era possível que fosse adicionada a qualquer combinação desejada, tal como o Coringa, uma última concessão ou coroação do triunfo, um acaso dentro do acaso, uma incógnita subsidiária que corrige aquela já conhecida.
O número de arcanos varia de acordo com o baralho. Um antigo baralho florentino possuía trinta e cinco cartas numeradas e seis fora de série.[5] Podem ser reconhecidas as três virtudes teologais, os quatro elementos, os doze signos do zodíaco, etc. Em resumo, qualquer que seja o número e a disposição, a série dos símbolos é constituída com a ajuda de imagens extensamente comunicativas. Os símbolos são de origem indiferentemente laica ou eclesiástica, pagã ou cristã, culta ou popular. O essencial parece ser obter uma “totalidade” que contenha o universo. A “totalidade” representada pelas cartas interfere, no momento da tiragem, na “totalidade” representada pelas casas. Todas as combinações são possíveis, e não existe nenhum acontecimento concebível que não entre nesta rede dupla. É um teclado infinito. O veredito, além disso, como já disse, está ali, verificável, legível, sem nenhuma obscuridade, paciente. Claro, aquele interessado não possui os dons, e talvez nem mesmo o saber que permitiria que o veredito seja interpretado com eficácia. Todavia, ele conhece o princípio, identifica os símbolos. Se necessário, retifica a hipótese incorreta do intérprete: o reconduz a uma estrada segura e, deste modo, participa da leitura envolvente do próprio destino. Acredito que seja este o porquê da preferência duradoura que se têm pelo Tarô e pela cartomancia em geral. As cartas constituem uma língua misteriosa, mas com um vocabulário rigoroso e com uma sintaxe exigente. O próprio consultante extrai, sob a forma de imagens precisas, os elementos que o dizem respeito e, então segue o discurso do Mestre, que adapta o significado geral ao caso particular. O adivinho não é mais como um mago que profetiza, ou, quem sabe, inventa, partindo de formas mutáveis na fumaça, dos reflexos indecisos e quase imperceptíveis, da confirmação do metal resfriado: estas formas instáveis, nunca idênticas a si mesmas, deixam aberta a porta da incerteza, do engano e do erro. Aqui, o léxico é estabelecido de uma vez por todas. Os hieróglifos são imutáveis e de número limitado. A sorte não intervém em nada além de indicar quais destes contém o porvir do consultante. Resta somente a decifração: e tal coisa parece um ato de ciência ou de perspicácia. Da mesma forma, o médico constrói o diagnóstico interpretando os sintomas que já sabe identificar. Oswald Wirth conclui a sua introdução ao estudo do Tarô com estas palavras: “O jogo é um exercício. O jogo do espírito desenvolve faculdades precisas. Sirvam-se dos 22 arcanos do Tarô para jogar adivinhação.” e recomenda este jogo sobre um jogo como uma excelente forma de imaginar com justeza. Me perguntava frequentemente, muito antes de conhecer este conselho, o que poderia ser a imaginação justa: é reunir, até onde seja possível, as condições da conjectura fortuita.
Roger Caillois
[1] N.d.T: Talvez o jogo ao qual Caillois esteja se referindo seja uma variante do “Khanhoo”, um dos jogos de cartas chineses pertencente à mesma família do Mahjong, ou mesmo ao Madiao, outro jogo de cartas chinês. No baralho Madiao, há uma carta chamada “miríada”, que significa o numeral “dez mil”. Este baralho era usado no jogo de Khanhoo.
[2] N.d.T: aqui, Caillois refere-se o baralho dito “Mantegna”. Trata-se de uma confusão: Naibi é o nome que se dá a um jogo de cartas recém chegado na Europa, de origem árabe, provavelmente na Itália. O baralho dito Mantegna é uma produção italiana, muito provavelmente da escola de Ferrara.
[3] N.d.T: fala-se “das” cartomantes pois, na época da escrita deste texto, era muito mais comum que a imagem da cartomancia fosse ligada às mulheres, coisa que reforçou a marginalização desta prática.
[4] N.d.T: Apesar do nome Mago ser utilizado na língua portuguesa, “prestigiador”, “mágico” ou “pelotiqueiro” é tradução mais apropriada de Bateleur, do nome da carta nos baralhos tradicionais.
[5] N.d.T: provavelmente o autor refere-se ao Minchiate, um tipo de baralho popular encontrado em toda a Itália já a partir do século XV.